A Diversidade e eu

_fernando
5 min readAug 10, 2017

Estou no metrô quando de repente senta (despenca) ao meu lado a Diversidade: distraído, com um livrinho velho à mão, tomo um susto. Mas logo me recomponho. A Diversidade começa a remexer na bolsa, nervosamente: abre zíper fecha zíper mexe remexe. E minha concentração vai para o espaço. A leitura estava tão boa… pô, logo aqui do meu lado?

Não teve jeito: tive de reparar na Diversidade. Disfarçando, evidentemente. Era jovem, franzino, com uma mecha azul no alto da cabeleira e sulquinhos na face, indicando espinhas secadas recentemente. Após os trabalhos na bolsa, finalmente encontra o smartphone. Cruza, descruza, cruza as pernas de novo. Balança a perna apoiada com certo cálculo para não me atingir. Parece agitada…

Bem, e daí? — penso. Volto ao livro. Não quero que a Diversidade note algum incômodo de minha parte, se exaspere e exploda. Diversidades são muito irritadiças, imagino. Mas a leitura não flui. Olhando as páginas sem lê-las, fecho o livro e divago. Tenho essa mania.

Lembro de algo.

Quando eu era garoto, num bairrinho longe e desimportante de São Paulo, era bem difícil encontrar uma Diversidade. Lá havia meninas gordinhas, magrinhas, bonitinhas, feinhas; meninos altos, baixos, gordos, magros, todos feios. Havia brancos, rosas, pretos, cafés-com-leite, amarelos, um vermelho. Todos mais ou menos parecidos no aspecto geral — e nenhuma Diversidade.

Ou melhor, havia uma. Sim...

Foi na escola, na sétima série. A gente fazia educação física: meninos tinham aula num dia, meninas no outro. E este era nosso dia de aula. O professor, que vinha para a escola numa Vespa vermelha e parecia o Chuck Norris, apesar de gente boa não era de muita conversa. Fazia a chamada e mandava a gente correr para aquecer: dez voltas em torno da quadra. Depois, polichinelos e dez flexões. E depois lançava a bola de capotão, formava dois times, organizava uma partida de futebol e a gente jogava bola.

No meio daquela molecada havia uma Diversidade. Bem, naquele tempo não a conhecíamos por esse termo, pois a palavra não se aplicava a pessoas, mas a itens num supermercado ou a produtos numa loja. A Diversidade da turma fazia aula conosco, os meninos, claro; mas detestava jogar bola. Ia pro gol: lugar que, conforme a lei da molecada, estava reservado para quem detesta futebol. Eu ficava de zagueiro — posição ingrata, oficial dos pernas de pau, de quem marca umas faltas pra impedir jogadas do adversário, faz uns lançamentos para rifar a bola, mas não sabe driblar nem marcar gol. Era meu caso.

Então, naquele dia, vi a Diversidade da sala a choramingar debaixo da trave, enquanto o time atacava lá no lado adversário. Fungava meio baixinho. O que havia? Sofria ali? Não sei. Vai ver, não queria ficar naquela aula. Reparei naquilo e me solidarizei com a Diversidade, embora não tivéssemos papo. Mas a entendi um pouco, sabe, porque eu também nunca fui assim muito fã de futebol, pois não era nenhum craque. Já quis ser o Zico um dia, mas minha pouca intimidade com a redonda me levava a ser o penúltimo escolhido para o time. A Diversidade era a última (“tá bom, vem você, vai…”).

De minha parte, me adaptava. Abstraía minha ruindade no esporte, aguentava o tranco e jogava. Também gritava, xingava, aquelas coisas: fazia o que tinha de fazer. Não era aquele o código da molecada? Moleque segue o código. Faz o que tem de fazer, se aguenta firme e não enche o saco.

Para a Diversidade era mais difícil, parecia.

Vi a Diversidade da sala choramingando, enquanto o time atacava lá no lado adversário. Fungava baixinho. O que havia? Parecia uma tortura, sei lá. Não queria ficar ali, era nítido. Reparei naquilo e me solidarizei intimamente com a Diversidade

Um dia, no final do bimestre, o professor realizou um campeonato interclasses, misturando meninos e meninas. Os garotos adoraram o evento: meninas com shortinho de lycra, saiazinhas curtas, etc. A Diversidade lá da sala também gostou, veja só! — foi admitido logo no time de vôlei das meninas. Elas, de shortinhos apertados e tudo, a nos olhar com desprezo como se fôssemos uns mendigos purulentos, nem ligavam de jogar com a Diversidade, ao contrário: riam, interagiam, davam-se muito bem.

Nunca nenhum professor nos mandava respeitar a Diversidade, nem desrespeitar. Também, nem precisava: ela tinha lá a turminha dela, nós a nossa, e a vida seguia. Faz tempo que deixei a escola, mas ouço dizer que professores hoje passam oitenta por cento do tempo em sala mandando respeitar a Diversidade e vinte por cento ensinando (mal) o bê-a-bá. Será? Pode ser, pois a garotada de hoje sabe que é Diversidade, mas sofre para identificar um advérbio de modo.

Enfim, eram outros tempos. Além daquela Diversidade da escola, só se via outras na televisão: no programa do Bolinha, no Silvio Santos, no Viva o Gordo, no Chacrinha. Quando as via na TV, eu criança, pensava em quê? Nada. Achava engraçado, pitoresco, e só.

Chega de divagar. O aviso sonoro indica que minha estação se aproxima. A Diversidade continua aqui do lado. Já perdi a concentração da leitura mesmo, então deixa pra lá. Caramba, a Diversidade aqui se agita miudinho, meio serpenteando no próprio eixo. Me irrita um pouco. Digita qualquer coisa no celular, põe a mão à boca, dá um risinho baixo. Há de estar boa a conversa... Como ela vive? Será feliz?

Olha eu divagando, de novo.

Imagino se teria assunto com a Diversidade. Mas nem tento. Sou ruim de puxar conversa. E outra: vai que eu escorregue no verbo e fale alguma coisa grosseira que a ofenda? Vai que a Diversidade arme um escândalo aqui? Vai saber? Deus me livre de confusão.

Se fosse antigamente, lá na escola, no tempo daquela outra Diversidade que não jogava bola, talvez pudesse falar alguma coisa, qualquer coisa. Seria mais fácil. Mas com essas Diversidades de hoje em dia, melhor dizer nada. Elas são, como direi?, muito conscientes de si. Um simples deslize e…

A mim, resta calar e fingir normalidade. Melhor não olhar demais. Anular-se por um momento, enfim. Não é esse o código vigente? Pois moleque segue o código. Faz o que tem de fazer, se aguenta firme e não enche o saco.

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_fernando

É assim que desejo escrever. Nada de efeitos finos — nada de bravura. Mas apenas a verdade absoluta, como só um mentiroso é capaz de contar. Katherine Mansfield